A gratidão é a mais agradável das virtudes; não é, no entanto, a mais fácil. Por que seria? Há prazeres difíceis ou raros, que nem por isso são menos agradáveis. Talvez sejam até mais. No caso da gratidão, todavia, a satisfação surpreende menos que a dificuldade. Quem não prefere receber um presente a um tapa? Agradecer a perdoar? A gratidão é um segundo prazer, que prolonga um primeiro, como um eco de alegria à alegria sentida, como uma felicidade a mais para um mais de felicidade. O que há de mais simples? Prazer de receber, alegria de ser alegre: gratidão. O fato de ela ser uma virtude, porém, basta para mostrar que ela não é óbvia, que podemos carecer de gratidão e que, por conseguinte, há mérito – apesar do prazer ou, talvez, por causa dele – em senti-la. Mas por quê? A gratidão é um mistério, não pelo prazer que temos com ela, mas pelo obstáculo que com ela vencemos. É a mais agradável das virtudes, e o mais virtuoso dos prazeres.
Objetar-me-ão a generosidade: prazer de oferecer, diz-se. O fato de ser um argumento publicitário deve, porém, nos deixar vigilantes. Se fosse agradável dar, acaso teríamos necessidade dos publicitários para pensar nisso? Se a generosidade fosse um prazer, ou antes, se fosse apenas um prazer, ou sobretudo um prazer, será que ela nos faltaria a esse ponto? Não se dá sem perda, por isso a generosidade se opõe ao egoísmo, e o supera. Mas e receber? A gratidão não nos tira nada, ela é dom em troca, mas sem perda e quase sem objeto. A gratidão nada tem a dar, além do prazer de ter recebido. Que virtude mais leve, mais luminosa, diríamos mais mozartiana, e não apenas porque Mozart nos inspira essa virtude, mas porque a canta, porque a encarna, porque há nele essa alegria, esse reconhecimento desvairado por sabe-se lá o que, por tudo, essa generosidade da gratidão, sim, que virtude mais feliz e mais humilde, que graça mais fácil e mais necessária do que ser grato, justamente, com um sorriso ou um passo de dança, com um canto ou uma felicidade? Generosidade da gratidão. Esta última expressão, que devo a Mozart, esclarece-me: se a gratidão nos falta com tanta freqüência, não será, de novo, mais por incapacidade de dar do que de receber, mais por egoísmo do que por insensibilidade? Agradecer é dar; ser grato é dividir. Esse prazer que devo a você não é apenas para mim. Essa alegria é a nossa. Essa felicidade é a nossa. O egoísta pode regozijar-se em receber. Mas seu regozijo é seu bem, que ele guarda só para si. Ou, se o mostra, é mais para fazer invejosos do que felizes: ele exibe seu prazer, mas é o prazer dele. Já esqueceu que outros têm algo a ver com isso. Que importância têm os outros? Por isso o egoísta é ingrato: não porque não goste de receber, mas porque não gosta de reconhecer o que deve a outrem, e a gratidão é esse reconhecimento, porque não gosta de retribuir, e a gratidão, de fato, retribui com o agradecimento, porque não gosta de partilhar, porque não gosta de dar. O que a gratidão dá? Ela dá a si mesma: como um eco de alegria, dizia eu, pelo que ela é amor, pelo que ela é partilha, pelo que ela é dom. É prazer somado ao prazer, felicidade somada à felicidade, gratidão somada à generosidade. O egoísta é incapaz disso, pois só conhece suas próprias satisfações, sua própria felicidade, pelas quais zela como um avaro por seu cofre. A ingratidão não é incapacidade de receber, mas incapacidade de retribuir – sob a forma de alegria, sob a forma de amor – um pouco da alegria recebida ou sentida. É por isso que a ingratidão é tão freqüente. Nós absorvemos a alegria como outros absorvem a luz: buraco negro do egoísmo.
A gratidão é dom, a gratidão é partilha, a gratidão é amor: é uma alegria que acompanha a idéia de sua causa, como diria Spinoza, quando essa causa é a generosidade do outro, ou sua coragem, ou seu amor. Alegria retribuída: amor retribuído. No sentido próprio ela só pode, portanto, referir-se a seres vivos. No entanto, podemos nos indagar se toda alegria recebida, qualquer que seja a sua causa, não pode ser objeto dessa alegria retribuída que é a gratidão. Como não agradecer ao sol por existir? À vida, às flores, aos passarinhos? Nenhuma alegria seria possível para mim sem o resto do universo (pois, sem o resto do universo, eu não existiria). É nisso que toda alegria, mesmo puramente interior ou reflexiva (a acquiescentia in se ipso de Spinoza), tem uma causa externa, que é o universo, Deus ou a natureza: que é tudo. Ninguém é causa de si, nem portanto (em última instância) de sua alegria. Toda série de causas, e há uma infinidade delas, é infinita: tudo se amarra, e nos amarra, e nos atravessa. Todo amor, levado a seu limite, deveria pois tudo amar: todo amor deveria ser amor a tudo (quanto mais amamos as coisas singulares, poderia dizer Spinoza, mais amamos a Deus), o que produziria como que uma gratidão universal, não indiferenciada, é claro (como poderíamos ter a mesma gratidão pelos passarinhos e pelas cobras, por Mozart e por Hitler?), mas global pelo menos no fato de que seria gratidão pelo todo, de que não excluiria nada, de que não recusaria nada, mesmo o pior (gratidão trágica, logo, no sentido de Nietzsche), pois o real é para pegar ou largar, pois o todo do real é a única realidade.
Essa gratidão é gratuita, por não se poder exigir dela, ou para ela, nenhum pagamento. O reconhecimento talvez seja um dever, em todo caso uma virtude, mas, observa Rousseau, não poderia ser um direito exigi-lo ou exigir o que quer que seja em seu nome. Não confundamos gratidão com retribuição de cortesias. Como quer que seja, porém, o amor quer bem ao amado, quase necessariamente, pelo menos se é amor ao outro e não a si, portanto, se é antes benevolência que concupiscência. Voltaremos a isso em nosso último capítulo. Digamos apenas que a gratidão é levada a agir, por sua vez, em favor de quem a suscita, não decerto para trocar um obséquio por outro (não seria mais gratidão, e sim troca), mas porque o amor quer dar alegria a quem o alegra, com o que a gratidão nutre a generosidade, quase sempre, que nutre a gratidão. Daí um “amor recíproco”, como diz Spinoza, e um “zelo de amor”, que caracterizam também a gratidão: “O reconhecimento ou gratidão é o desejo ou o zelo de amor pelo qual nos esforçamos em fazer o bem àquele que o fez a nós, em virtude de um sentimento semelhante de amor por nós.” É aí que passamos da gratidão simplesmente afetiva, como dirá Kant, à gratidão ativa: da alegria retribuída à ação retribuída. Quanto a mim, e apesar de Spinoza, eu veria nisso menos uma definição (pois, por exemplo, podemos ter gratidão por um morto, ao qual não poderíamos fazer o bem) do que uma conseqüência, mas pouco importa. O certo é que a gratidão se distingue da ingratidão precisamente por saber ver no outro (e não, como o amor-próprio, unicamente em si mesmo) a causa de sua alegria – pelo que a ingratidão é ruim, pelo que a gratidão é boa, e torna bom.
A força do amor-próprio explica assim a raridade ou a dificuldade (“tudo o que é belo é tão difícil quanto raro.”) da gratidão: cada um, do amor recebido, prefere tirar glória, que é amor a si, em vez de reconhecimento, que é amor ao outro. “O orgulho não quer dever”, escreve La Rochefoucauld, “e o amor-próprio não quer pagar”. Como não seria ele ingrato, se só sabe amar a si, admirar a si, celebrar a si? Há humildade na gratidão, e a humildade é difícil. Uma tristeza? É o que diz Spinoza, e voltaremos a isso no próximo capítulo. O que a gratidão ensina, porém, é que existe também uma humildade alegre, ou uma alegria humilde, porque ela sabe que não é sua própria causa, nem seu próprio princípio – e se regozija ainda mais (que prazer dizer obrigado!) com isso -, porque ela é amor, e não amor a si antes de tudo ou sobretudo, porque se sabe devedora, se quisermos, ou antes (pois nada tem a reembolsar), porque se sabe plenamente satisfeita, além de qualquer expectativa e anteriormente a qualquer expectativa, pela própria existência do que a suscita, e que pode ser Deus, quando se crê nele, que pode ser o mundo, que pode ser um amigo, um desconhecido, que pode ser qualquer um, porque ela se sabe objeto de uma graça – aí está! – que é a existência, talvez, ou a vida, ou tudo, e que ela agradece, sem saber a quem nem como, porque é bom agradecer, regozijar-se com seu regozijo e com seu amor, cujas causas sempre nos excedem, nos contêm, nos fazem viver, nos arrebatam. Humildade de Bach, humildade de Mozart, tão diferentes uma da outra (o primeiro agradece, dá graças, com gênio sem igual, o segundo, poder-se-ia dizer, é a própria graça.), mas ambas comoventes de gratidão feliz, de simplicidade verdadeira, de potência quase sobre-humana, com a serenidade, mesmo na angústia ou no sofrimento, de quem se sabe efeito, não princípio, e contido naquilo que canta, e que o faz ser, e que o arrebata. Clara Haskil, Dinu Lipatti ou Glenn Gould souberam exprimir isso, parece-me, pelo menos em seus melhores momentos, e essa alegria que temos em ouvi-los diz o essencial da gratidão, que é a própria alegria enquanto recebida, enquanto imerecida (sim, mesmo para os melhores!), enquanto graça, e sempre integrada (e parte integrante, porém) numa graça mais elevada, que é existir, o que estou dizendo, que é a própria existência, que é o próprio ser, e o princípio de toda existência, e o princípio de todo ser, e de toda alegria, e de todo amor. Sim, isso que podemos ler na Ética de Spinoza também ouvimos na música, e nas de Bach e de Mozart, parece-me, melhor do que em qualquer outra (em Haydn ouvem-se mais a polidez e a generosidade, em Beethoven a coragem, em Schubert a doçura, em Brahms a fidelidade.), e é o suficiente para dizer a que altura a gratidão se situa: virtude de ápice, e para os gigantes muito mais que para os anões. No entanto, isso não nos poderia dispensar dela: agradeçamos à graça, antes de tudo aos que a revelam celebrando-a!
Nenhum homem é causa de si. O espírito, dizia Claude Bruaire, está “em dívida de seu ser”. Mas que nada, por ninguém pediu para estar (o empréstimo, não o dom, é que faz a dívida), pois ninguém, de resto, poderia saldar essa dívida. A vida não é dívida: a dívida é graça, o ser é graça, e esta é a mais elevada lição de gratidão.
A gratidão se regozija com o que aconteceu, ou com o que é; ela é, portanto, o inverso do arrependimento ou da nostalgia (que sofrem com um passado que foi, ou que não é mais), como também da esperança ou da angústia, que desejam ou temem (desejam e temem!) um futuro que ainda não é, que talvez nunca seja, mas que as tortura com sua ausência. Gratidão ou inquietude. A alegria do que é ou foi, contra a angústia do que poderia vir a ser. “A vida do insensato”, dizia Epicuro, “é ingrata e inquieta: ela se volta toda para o futuro.” Por isso eles vivem em vão, incapazes de se saciarem, de se satisfazerem, de serem felizes: eles não vivem, dispõem-se a viver, como dizia Sêneca, esperam viver, como dizia Pascal, depois lamentam o que viveram ou, mais freqüentemente, o que não viveram. O passado como o futuro lhes falta. Já o sábio regozija-se com viver, claro, mas também com ter vivido. A gratidão (charis) é essa alegria da memória, esse amor do passado – não o sofrimento do que não é mais, nem o pesar pelo que não foi, mas a lembrança alegre do que foi. É o tempo reencontrado, se quisermos (“a gratidão do que foi”, diz Epicuro). Compreendemos que esse tempo torna a idéia da morte indiferente, como dirá Proust, pois aquilo que vivemos, a própria morte, que nos levará, não poderia tomar de nós: são bens imortais, diz Epicuro, não porque não morremos, mas porque a morte não poderia anular o que vivemos, o que fugidia e definitivamente vivemos. A morte só nos privará do futuro, que não é. A gratidão liberta-nos dele, pelo saber alegre do que foi. O reconhecimento é um conhecimento (ao passo que a esperança nada mais é que uma imaginação); é por aí que ela alcança a verdade, que é eterna, e a habita. Gratidão: desfrutar eternidade.
Isso não nos restituirá o passado, objetar-se-á a Epicuro, nem o que perdemos. Sem dúvida, mas quem pode fazê-lo? A gratidão não anula o luto, consuma-o: “É necessário curar os infortúnios com a lembrança reconhecida do que perdemos, e pelo saber de que não é possível tornar não-consumado o que aconteceu.” Pode haver formulação mais bela do trabalho do luto? Trata-se de aceitar o que é, portanto, também o que não é mais, e de amá-lo como tal, em sua verdade, em sua eternidade: trata-se de passar da dor atroz da perda à doçura da lembrança, do luto a consumar ao luto consumado (“a lembrança reconhecida do que perdemos”), da amputação à aceitação, do sofrimento à alegria, do amor dilacerado ao amor apaziguado. “Doce é a lembrança do amigo desaparecido”, dizia Epicuro – a gratidão é essa própria doçura, quando se torna alegre. No entanto, o sofrimento é mais forte primeiro: “Que terrível ele ter morrido!” Como poderíamos aceitar? Por isso o luto é necessário, por isso é difícil, por isso é doloroso. Mas a alegria retorna, apesar dos pesares: “Que bom ele ter vivido!” Trabalho do luto: trabalho da gratidão.
Não estou persuadido de que a gratidão seja um dever, como pensavam Kant e Rousseau. Aliás, não acredito muito nos deveres. Mas o fato de ela ser uma virtude, isto é, uma excelência, é atestado pela evidente baixeza de quem é incapaz de gratidão, e atesta a mediocridade de nós todos, que carecemos dela. Como o ódio sobrevive melhor que o amor! Como o rancor é mais forte que a gratidão! Pode ser até que esta às vezes se inverta naquela, a tal ponto o amor-próprio é suscetível: a ingratidão para com o benfeitor, escreve Kant, “é um vício na verdade extremamente detestável ao juízo de todos, embora o homem tenha tão má reputação sob esse aspecto, que ninguém considera inverossímil que seja possível fazer um inimigo mediante benefícios notáveis”. Grandeza da gratidão: pequenez do homem.
Sem contar que o próprio reconhecimento pode ser às vezes suspeito. La Rochefoucauld não via nele mais que interesse disfarçado, e Chamfort notava com razão que “há uma espécie de reconhecimento baixo”. É servilidade disfarçada, egoísmo disfarçado, esperança disfarçada. Só se agradece para se ter mais (diz-se “obrigado”, pensa-se “mais”!). Não é gratidão, é lisonja, obsequiosidade, mentira. Não é virtude, é vício. Aliás, mesmo sincero, o reconhecimento não poderia nos dispensar de nenhuma outra virtude, nem justificar qualquer falta que fosse. Virtude segunda, se não secundária, que cumpre manter em seu devido lugar: a justiça ou a boa-fé podem autorizar uma falta com a gratidão, mas não a gratidão uma falta com a justiça ou a boa-fé. Ele me salvou a vida: devo, por isso, impor-me um falso testemunho em seu favor e com isso condenar um inocente? Claro que não! Não esquecer não é ser ingrato, pelo que devemos a determinado indivíduo, o que devemos a todos os demais e a nós mesmos. Não é ingrato, escreve Spinoza, “aquele que os dons de uma cortesã não transformam em instrumento dócil de sua lubricidade, os de um ladrão num receptador de seus roubos, ou qualquer outra coisa semelhante. Pois esse, ao contrário, mostra que é dotado de constância de alma, que não se deixa corromper por nenhum presente, seja para sua própria perda, seja para a perda comum.” Gratidão não é complacência. Gratidão não é corrupção.
A gratidão é alegria, repitamos, a gratidão é amor. É por isso que ela se aproxima da caridade, que seria como “uma gratidão incoativa, uma gratidão sem causa, uma gratidão incondicional, assim como a gratidão é uma caridade segunda ou hipotética”. Alegria somada a alegria: amor somado a amor. A gratidão é nisso o segredo da amizade, não pelo sentimento de uma dívida, pois nada se deve aos amigos, mas por superabundância de alegria comum, de alegria recíproca, de alegria partilhada. “A amizade conduz sua dança ao redor do mundo”, dizia Epicuro, “convidando todos nós a despertar para dar graças.” Obrigado por existir, dizem um ao outro, e ao mundo, e ao universo. Essa gratidão é de fato uma virtude, pois é a felicidade de amar, e a única.
Fonte:
Pequeno Tratado das Grandes Virtudes
De André Comte-Sponville
Ed. Martins Fontes, São Paulo, 1999
Tradução de Eduardo Brandão
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