Jornal Folha de S. Paulo – Por Drauzio Varella
Consideramos porta de entrada a droga que reduz o limiar para a adição a outros agentes.
Essa hipótese foi levantada em 1975 por Denise Kandel, ao observar que jovens envolvidos com drogas psicoativas, costumam fazê-lo em estágios e sequências. Tipicamente, o abuso de tabaco e álcool precede o de maconha, que por sua vez antecede o de cocaína e outras drogas ilícitas.
Um grande inquérito americano publicado em 2012 mostrou que entre os adultos de 18 a 34 anos que já haviam usado cocaína, 87,9% eram fumantes antes de experimentá-la, 5,7% começaram a consumir as duas drogas ao mesmo tempo, 3,5% usaram cocaína antes de ser fumantes e apenas 2,9% nunca fumaram cigarros.
Uma alternativa à hipótese da porta de entrada é a de que o uso repetitivo de uma droga psicoativa reflita determinadas características genéticas e comportamentais que aumentam o risco individual de adição a outras drogas.
Embora os levantamentos epidemiológicos possam evidenciar a sequência em que diferentes drogas são usadas e especificar suas associações, são incapazes de identificar os fatores envolvidos na progressão de uma droga para outra e os mecanismos responsáveis por ela.
Estudos clássicos na área da psicologia demonstraram que a adição é uma forma de aprendizado e que as recaídas estão relacionadas com memórias persistentes das sensações de prazer obtidas com a droga.
Denise Kandel, o marido Eric Kandel (prêmio Nobel em 2000) e Amir Levine estudaram os efeitos da administração de nicotina e cocaína em ratos.
Ratos que recebiam nicotina na água de beber não se tornavam mais ativos do que o grupo-controle tratado com água pura. Já os que recebiam cocaína movimentavam-se por um tempo 58% maior.
Os que tomavam água contendo nicotina durante sete dias, para depois receber nicotina mais cocaína por mais 4 dias, ficavam 98% mais ativos.
A inversão dessa ordem (sete dias de cocaína seguidos de quatro dias de nicotina mais cocaína) não aumentava os níveis de atividade locomotora.
Um dos fatores de risco para recaídas entre usuários em abstinência é retornar aos locais em que habitualmente consumiam a droga. Descrita também em animais de laboratório, essa preferência condicionada por um local em particular está ligada aos circuitos cerebrais do sistema de recompensa.
Da mesma forma que no experimento anterior, ratos tratados durante sete dias com água contendo nicotina, seguidos de quatro dias de nicotina mais cocaína, permaneciam 78% a mais de tempo no canto da gaiola associado à administração de cocaína, do que aqueles do grupo-controle.
O casal de pesquisadores também estudou as moléculas envolvidas na plasticidade das sinapses entre os neurônios, numa área do cérebro (núcleo accumbens) encarregada de integrar os impulsos que trafegam pelos neurônios liberadores de dopamina e glutamato, mediadores das sensações de prazer e recompensa.
Uma única injeção de cocaína em ratos que haviam recebido nicotina por sete dias é suficiente para reduzir o limiar de estimulação dos neurônios que liberam dopamina e glutamato, potencializando a sensação de prazer por até três horas.
Como nos experimentos anteriores, a administração de apenas nicotina, apenas cocaína por sete dias ou cocaína durante sete dias seguidos por nicotina durante 24 horas não produz esse resultado.
Os autores demonstraram a mesma redução do limiar de excitação de neurônios induzida pela nicotina em outra área cerebral, a amígdala (responsável por orquestrar as emoções), região crítica para a adição.
Essas observações finalmente descrevem as bases biológicas e os mecanismos moleculares relacionados com a sequência do consumo de drogas encontrada em seres humanos. Uma droga age nas sinapses de certos circuitos cerebrais criando condições para potencializar os efeitos da outra.
A hipótese da porta de entrada não exclui a das tendências genéticas e comportamentais que afetam o risco de adição, pelo contrário, ambas são complementares.
Fatores gerais, como os genes e o comportamento, explicam a tendência para o uso de drogas psicoativas, enquanto fatores específicos explicam por que certos jovens usam determinadas drogas e o fazem em sequências particulares.
Drauzio Varella é médico cancerologista. Por 20 anos dirigiu o serviço de Imunologia do Hospital do Câncer. Foi um dos pioneiros no tratamento da Aids no Brasil e do trabalho em presídios, ao qual se dedica ainda hoje. É autor do livro ‘Estação Carandiru’ (Companhia das Letras). Escreve aos sábados, a cada duas semanas.
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